sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Conversa de bar: Dois fãs de Joy Division

Entrevistei o escritor Arlindo Gonçalves em função do lançamento do livro “In Aeternum”, obra em que ele conta em detalhes não só a história da banda, mas principalmente todo seu envolvimento afetivo com ela.

Sendo eu também um fã inveterado da banda inglesa, resolvi me meter no papo propondo uma conversa em que ambos respondessem as mesmas perguntas criando assim um climão de conversa de boteco, coisa que faríamos certamente caso estivéssemos perto, o resultado você vê abaixo, bacana viu.



1 – Sobre a primeira experiência com o Joy Division:

Arlindo: Quando conheci o Joy Division, a banda não mais existia. Foi por intermédio de um programa de clipes que ouvi falar deles. O programa em si era o Crig-Rá, que, para época (1985), foi um pioneiro na divulgação de música alternativa.

O semanário era comandado pelo hoje bastante conhecido Marcelo Tas, na pele do aloprado apresentador Bob Mc Jack. Era mesmo um formato genial de programa de vídeos; os caras diziam que o Crig-Rá era: “O melhor programa de rádio da TV brasileira”.

Nas minhas pesquisas para o In Aeternum, li uma entrevista com os realizadores e eles diziam se orgulhar de terem sido os primeiros a veicular o U2 no Brasil. Então, foi lá no Crig-Rá que ouvi falar pela primeira vez do Joy Division. Na verdade, era um clipe do New Order seguido por outro dos Smiths. Ao término, o Tas contou a história dos dois grupos e obrigatório foi tratar o Joy Division e o suicídio de Curtis enquanto explicava o New Order.

Fiquei impressionado e passei a procurar a banda. Acontece que o ano era 1985, o Brasil era uma ilha distante de muitas coisas, incluindo as músicas de vanguarda que eram feitas em outros países. Em resumo, estávamos saindo da ditadura civil-militar e ainda não conseguíamos alcançar bandas como as que tocavam no Crig-Rá.

Eu bati, sem sucesso, minha cabeça por lojas de discos; não encontrava nada da banda. Felizmente, um pouco depois daquele meu primeiro contato com eles, eu soube que uma estação de rádio da época, especializada em rock, anunciou para um sábado daquela semana um especial do Joy Division e do New Order. Eu comprei uma fitinha cassete e gravei o especial. Essa fita foi meu batismo de Joy Division.

Infelizmente, o material deteriorou-se com os anos e eu não mais disponho dele. Toda essa história está no In Aeternum. Foram anos difíceis, de pouco ou nenhum acesso a músicas e a livros alternativos. Mas, hoje, com o distanciamento que o tempo proporcionou, retomo com ternura aquela época. Procurei relatar tudo isso com nostalgia, mas não com exagerado saudosismo. O melhor da vida é curtir cada fase dela e cultivar as memórias daqueles que merecem ser lembrados.


Nino: Meu primeiro contato com eles também foi em torno de 1985, foi meu primeiro ano como dark, mas até então era um dark desprovido de muito conteúdo, acho que foi o “The Head on the Door” que me levou a ser um homem de preto, mas era um disco pop, de certa forma, havia boatos de que a coisa era bem mais profunda e comecei a ir atrás, eu era bom na garimpagem de pérolas musicais.

Todos meus amigos na época frequentavam a casa noturna Taj Mahal, um lugar que tocava o melhor dos anos 80, tocados o lado A e o lado B, nessas descobri que uma de minhas amigas era irmã de um musico punk conhecido da cena gaúcha, vocalista do Pupilas Dilatadas, o Gustavo Brum, o cara tinha uma discografia invejável de obscuridades, trocava cartas e discos com o Jello Biafra, da Alternative Tentacles, então, uma noite eu fui conhecê-lo e foi então que ouvi o “Closer” pela primeira vez.

Aquele encontro me fez conhecer o Bauhaus, o Killing Joke e os Sisters of Mercy também, caceta, aquilo sim era dark e as fitinhas que gravei lá passaram a fazer sucesso entre todos em minha volta, foi a minha introdução e foi assim que “A means to an end”, Kick in the eye”, “Love Like Blood” e “Walk Away” passaram a tocar no Taj Mahal, mesmo sendo em fitas k7, o negocio começava a ficar seriamente dark, para nosso orgulho.







 2 – Você é um profundo conhecedor e colecionador da banda. Quais são os itens mais raros que tem?
Arlindo: Tenho muitos itens do grupo, mas nada que tenha valores monetários acima do normal. Por outro lado, tenho diversas coisas de enorme peso sentimental, como a primeira edição de “Ian Curtis & Joy Division” (Portugal: Assírio & Alvim, de 1983).


O livro teve edições posteriores, tenho até um segundo volume, de 1997, que facilmente se encontra na internet a preços justos. A raridade, portanto, é relativa. O que o faz tão especial para mim é que eu o comprei em 1985, pouco tempo depois de eu gravar a fita cassete sobre a qual falei no início.
Diferentemente da fita, que acabou se deteriorando, preservo até hoje o livrinho em sua primeira edição, isso porque foi na capa dele que vi pela primeira vez uma foto do Ian Curtis.

Aconteceu, recentemente, uma história incrível. Como expliquei, o lance da fitinha cassete que gravei está no In Aeternum. Após o lançamento, um leitor rapidamente leu o livro e me escreveu dizendo que tinha gravado o mesmo programa de 1985 e que preservara o cassete até hoje. Gentilmente, ele conseguiu passar a gravação analógica para um CD e me deu de presente. Foi um final feliz e inusitado para uma história iniciada há mais de trinta anos.

Nino: Eu acho que a primeira vez que vi a foto do Ian também foi através desse livro, foi algo entre 86 pra 87, mas recordo que havia visto uma matéria da banda nas páginas da extinta Melody Maker, mas não sei precisar se foi antes ou depois do livro, esse lapso de memória talvez se deva ao fato de que o Joy Division foi uma banda que me possuiu aos poucos, o livro ajudou muito nisso, não era só o som né Arlindo, era a poesia do cara, foi quando tudo passou a fazer muito mais sentido.

 E quanto a minhas fitas, bom, elas se deterioram também, porque rodavam muito, nós fazíamos muitas festas entre nosso grupo, eu sempre fui o encarregado da trilha sonora que embalava nossa turma, queria poder voltar no tempo e pegá-las de volta, isso valeria muito mais do que um grande disco raro.

No mais eu também não tenho nada fora do comum além dos discos oficiais lançados.





3 – O Joy Division criou uma escola muito grande; muitas bandas se assemelham demais a eles. Alguma delas te chama a atenção?


Arlindo: Sim, muitas bandas foram e/ou são influenciadas pelo Joy Division. Algumas delas até muito contemporaneamente ao quarteto de Manchester, como é o caso do Red Lorry Yellow Lorry, que, curiosamente, descobri um pouco depois de ter conhecido a banda de Ian Curtis. Lembro-me até hoje como foi. Veio parar em minhas mãos um fanzine muito legal, com matérias interessantes sobre bandas alternativas. Havia um artigo sobre o Red Lorry Yellow Lorry que traçava um perfil curioso dos caras. Mais ou menos nessas palavras, era dito: “…uma banda que mistura Black Sabbath, punk, industrial e Joy Division”. Bem pitoresco, não? Assim me pareceu. Mas, ao conseguir ouvir o grupo, verifiquei que havia mesmo ecos do Joy Division no Red Lorry Yellow Lorry. Essa história ficou cravada na minha memória. Mais recentemente, verificamos outros nomes, dos quais destaco o Interpol e o She Wants Revenge.

Nino: Tenho um blog chamado Universo post punk, é uma forma de manter ativo meu fascínio antigo pelo post punk e encontro diariamente inúmeras bandas similares ao Joy Division e também ao Sisters of Mercy, a herança deixada por eles é fantástica, mas por outro lado é um pouco maçante se parecerem demais.

Algumas possuem seus diferenciais, a Red Lorry é um bom exemplo disso, entre as mais novas creio que o Interpol vem fazendo um trabalho similar mas bem refinado, gosto deles.




4- Na sua opinião, quais motivos levaram o Ian a ceifar sua própria vida?

Arlindo: Entendo que foi um mix de: pressão ocasionada pela rotina de shows e expectativa pela viagem aos E.U.A., tudo agravado pelo tratamento contra a epilepsia.

Por enquanto, deixo de fora o caso extraconjugal com a Annik Honoré, mas volto a ele ainda nesta resposta. Na época em que Curtis descobriu a doença, os remédios eram muito agressivos, os pacientes sofriam um estigma muito maior do que ainda hoje sofrem – cabe dizer que o preconceito contra um epiléptico continua sendo muito grande.

A Lindsay Reade, ex do Tony Wilson, publicou uma biografia do Ian Curtis, juntamente com o Mick Middles (Torn apart: the life of Ian Curtis, de 2006). Esse livro é pródigo em reproduzir diversas cartas do Ian para a Annik. Em muitas, ele conta a angústia que a doença lhe causava.
Ele, um dia, escreveu que desde o surgimento da moléstia, pensava muito em achar um caminho para o fim. “Um caminho para o fim” pode ser um prenúncio do suicídio dele, ainda mais se levarmos em conta que Ian já tentara se matar uma vez. Mas achar “um caminho para o fim” pode também ser outra coisa, algo como encontrar soluções para restaurar a estabilidade.

E isso, talvez, pudesse significar deixar a banda. Tive de estudar diversas matérias, livros e artigos sobre suicídio, até porque é inevitável falar de Joy Division sem abordar o assunto, como também precisei estudar o tema porque aprofundei outros suicídios no livro: o de um amigo meu, que se matou de maneira idêntica à do Curtis, e o do pai do jornalista Paul Morley (eu uno as três histórias ao fim do In Aeternum).

Pois bem, pelo pouco que, modestamente, aprendi na pesquisa, o fato de um potencial suicida dar sinais de que vai se matar é um apelo grave que não pode deixar de ser considerado. Se alguém diz que pensou ou pensa em suicidar-se, isso, de fato, passou ou passa pela cabeça da pessoa – salvo exemplos de dissimuladores de emoções, que, por muita desenvoltura, podem blefar.

De fato, na maioria dos casos, o perigo é mesmo iminente. Eu acredito que a rotina e os remédios o levaram a uma exaustão mental muito grande e o caso extraconjugal passou a ser potencializado, tanto que ele já não mais sabia o que, dentre todas essas coisas, o amargurava mais.

Junte a isso a vergonha que ele tinha da doença e a preocupação em controlá-la durante os shows nos E.U.A. Dá mesmo para imaginar o turbilhão que se formou. Ele pensava, sim, em se matar, mas defendo que a decisão ocorreu no último minuto, após uma noite em claro, sozinho em casa e depois de ter bebido bastante – álcool para um epiléptico é algo muito complicado.

As ações dele, nos momentos que antecederam ao ato final, são clássicos na literatura do assunto. Ele recorreu a muitos amigos antes de ir em definitivo para a rua Barton, onde pôs fim a tudo. Estava, francamente, pedindo ajuda de forma desesperada e angustiada.

Nino: Penso de forma similar, venho de uma família com forte histórico de depressão severa, houve vários casos de suicídio, eu presenciei cinco casos em minha existência, dois foram por enforcamento e os motivos eram bem mais amenos do que os de Ian, mais amenos mas nem por isso menos complicados, em todos havia um problema que parecia para eles não ter solução.

Eu mesmo tive propensão a pensar errado, mas procurei ajuda a tempo, porque sempre tive consciência de que a mente nos prega armadilhas, que é uma linha muito tênue que separa o equilíbrio do total desequilíbrio.

O último caso foi muito horrível, pois era um primo ainda muito novo, tinha uma bela vida construída, uma filha linda de 5 anos, estabilidade, parecia uma pessoa feliz, nos pegou de cheio, nessa hora você não sabe o que pensar, é um misto de raiva e tristeza ao mesmo tempo, ceifar a vida é um ato egoísta porque não se pensa na destruição que isso irá causar por uma atitude voluntária, então é uma outra forma de dor, uma outra forma de luto.

Eu também vivi a música através de uma banda que rodou muito, anos a fio, a vida na estrada te leva a situações inesperadas, envolvimentos acontecem, você oscila entre dois mundos, aquele que te espera quando você volta e aquele que gira entre os palcos e por trás dele, é um bombardeio de emoções, a confusão é certa, isso que levou quase a beira da loucura, os pés não tocam mais o chão.
Sempre que tento entender Ian, penso em tudo isso junto com o agravante seríssimo que era sua doença e o estado em que seu coração estava, eu jamais poderia condena-lo, Ian era uma pessoa admirável, foi triste.


5 – O que te levou a escrever o livro e quanto tempo durou esse processo?

Arlindo: Desde aquela primeira fita gravada do rádio, tornei-me fã e colecionador da banda. Após gravar o cassete, finalmente, encontrei numa loja diversos discos do Joy Division – os dois clássicos LPs, mais o póstumo e duplo “Still” e o EP da “Love will tear us apart”.

De todas as quatro capas, a que mais me fascinou foi a do “Closer”. Fiquei devastado pela beleza lúgubre daquele túmulo. Dali em diante, passei a cultivar aquela capa de forma estética, claro, mas sentimental, sobretudo. A foto que está em “Closer” tornar-se-ia, para mim, então, uma imagem afetiva. No futuro, viramos (a Luciana – coautora do segundo volume do In Aeternum – e eu) fotógrafos e escritores. Como fotógrafos, nos dedicamos a fotos urbanas. Como escritora, ela tornou-se pesquisadora do Romantismo e biógrafa do poeta Álvares de Azevedo.

Eu, na escrita, dediquei-me a contos, novelas, romance e crônicas – tudo passando-se no ambiente urbano de São Paulo. Adicionalmente, nos dedicamos à fotografia de arte tumular. Começou nos anos 2000, quando fotografamos sucessivamente o Cemitério da Consolação, em São Paulo. Em 2013, decidimos viajar para Gênova, na Itália, com a intenção de conhecer a tumba Apiani, que fica no cemitério Staglieno. Esse monumento é justamente o que está na capa de “Closer”.

Como é sabido, é de lá do Staglieno, também, o túmulo que consta na capa do EP da “Love will tear us apart”. Ao voltarmos ao Brasil, acabei ficando doente e de licença por dez dias, além de sofrer uma internação de emergência. Quando me recuperava, tive a ideia de escrever crônicas sobre os anos 1980.

O pressuposto é que tudo se passasse no ambiente central de São Paulo e que abordasse a minha descoberta do Joy Division pelas pioneiras lojas de discos da cidade. O livro não é linear, começa em 2013, retrocede a 1985, pula para 1986, retorna a 1985 e, novamente, 2013. Nessas crônicas, desvendo a história da banda por um ponto de vista pessoal, com respeito à pesquisa histórica e bibliográfica, claro.

Intercalados aos capítulos que chamo de crônicas, estão dispostos ensaios temáticos que escrevi sobre o Joy Division e que versam sobre aspectos específicos do grupo, como a origem do nome da banda; a influência da literatura nas letras de música de Ian Curtis; a produção de imagens que foi feita durante a curta carreira do quarteto; há também capítulos específicos para analisar os discos e muito mais coisas. Fechando o primeiro volume, eu escrevo sobre a fase final da vida de Ian Curtis, unindo-a à trágica morte de um amigo meu, que se suicidou da mesma maneira que o cantor, e a uma terceira história de suicídio, no caso, a do pai do jornalista Paul Morley, biógrafo do Joy Division e de outros artistas da música mundial.

Ainda nessa parte do livro, falo da ruptura do New Order e trago um ensaio de fotos de Manchester e Macclesfield, onde estivemos em 2017. O segundo volume é um caderno de fotografias do Staglieno. O livro consumiu cinco anos para ser feito. A notícia boa é que já temos (a Luciana e eu) um novo livro; Ian Curtis e Álvares de Azevedo, nossos biografados, estarão nele em uma ficção insólita. Sairá em 2019.




6 – Love will tear us apart poderia ser entendida como um hino ao suicídio, como vimos em “13 Reasons why”? O que acha disso?

Arlindo: Não, definitivamente, não entendo a canção como um hino ao suicídio. Eu a vejo como o prenúncio de uma dolorosa ruptura na relação amorosa entre um homem e uma mulher. Não encontro nada em “Love will tear us apart”, mesmo de forma subjacente, sobre suicídio. Até vejo algo assim em outra música, “24 hours”, que é uma canção que tem uma condução instrumental brilhantemente simples e intrincada ao mesmo tempo, bem como uma letra que invoca sentimentos muito fortes.

 Vejo ali alguns indícios de um pedido de ajuda e que se ele não vier, para quem emite o apelo, poderá ser tarde demais. É quando é dito: “Agora que me dei conta de como tudo deu errado / Tenho de encontrar alguma terapia, esse tratamento demora demais / No fundo do coração, de onde a simpatia dominava / Tenho de encontrar meu destino, antes que seja tarde demais”. Eu não assisti ao seriado “13 Reasons Why”, mas fiquei triste ao saber que pudessem associar a canção ao tema do suicídio.

Nino: Fiz essa pergunta porque foi uma série bem polêmica e vista por muitos como inconsequente, a direção do seriado foi obrigada a colocar uma chamada para o centro de ajuda a vida, porque, sendo algo dirigido ao público adolescente e se tornado sucesso total, não havia nada que fizesse o publico refletir sobre a gravidade da situação.

Então, pessoalmente me irritou muito ver “Love will tear us apart” como uma espécie de música tema desse seriado modinha, é um desrespeito ao próprio Ian e a realidade da canção que trata de uma das verdades sobre o amor entre duas pessoas, a rotina, a estagnação, a separação, coisas que creio que todos passem.

Criar esse estigma é algo asqueroso.


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